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Entrevista com Heraldo da Costa Reis

Membro do corpo técnico do IBAM há 40 anos, Heraldo da Costa Reis, coautor do livro “A Lei 4.320 Comentada” e responsável por suas atualizações, fala sobre a gestão pública, defende a adoção do princípio contábil da competência e comenta dúvidas de caráter orçamentário, financeiro e patrimonial que esclarece no seu dia a dia no Instituto.

O senhor trabalha há muitos anos no IBAM e com a área pública. Como o senhor enxerga a gestão das entidades públicas em todo este período? Quais foram as mudanças significativas?

Penso que a gestão pública, em todas esferas governamentais, procura cumprir de forma correta com as suas finalidades junto aos cidadãos, em que pese as dificuldades encontradas, tais como a falta de recursos financeiros e de outras naturezas.

As mudanças significativas estão se evidenciando:

  1. na conscientização do cidadão da necessidade de participar efetivamente da gestão, exigindo do gestor mais responsabilidade no exercício das funções que lhes pertinem;
  2. na melhor qualificação dos nossos gestores que se conscientizaram de que antes de serem políticos gestores são cidadãos, e, como tais, beneficiam-se das consequências dos atos que praticam;
  3. na melhor qualificação dos servidores que auxiliam os gestores principais no cumprimento das suas responsabilidades.

Em seu artigo Regime de caixa ou de competência: eis a questão, o senhor defende que as contabilidades das organizações governamentais deveriam utilizar o princípio contábil da competência financeira para o reconhecimento das respectivas receitas e despesas. Quais os impactos que essa adoção poderia trazer para gestão dessas entidades? E quais os procedimentos necessários para a adoção deste princípio?

Preliminarmente, esclareço a utilização da expressão competência financeira no artigo Regime de Caixa ou de Competência: eis a questão, para diferenciá-la da expressão competência orçamentária utilizada atualmente pelas contabilidades governamentais no reconhecimento das despesas orçamentárias, em razão do que dispõe o art. 35, II, da Lei 4320, de 17 de março de 1964.

A utilização efetiva do princípio contábil da competência melhoraria a qualidade da informação gerada pela Contabilidade, tão prejudicada em razão de interpretação equivocada da legislação que orienta os procedimentos contábeis, e evitaria o surgimento de contas como Restos a Pagar Não Processados, que distorce o conteúdo informativo das demonstrações preparadas pela Contabilidade.
Demais disso, a Lei 4320, bem como a recente LC 101/2000, nunca foram entendidas como as que têm relações com os dispositivos de Leis como as de nº 5172/1966, 8666/93 e. até mesmo, de anteriores.

Bem, muito mais importante é entender que a adoção do Princípio da Competência muda completamente o sentido das informações sobre a situação econômico-financeira da entidade, pois revela uma situação um tanto obscura como a que se relaciona com os devedores da fazenda pública, não apenas os que se encontram em cobrança amigável, como aqueles que estão em cobrança judicial, posto que nunca foram revelados.

A todo o instante lemos nos jornais discussões sobre o quanto gasta o Poder Público com as chamadas despesas de custeio, e dentre estas as que se destinam a despesas de pessoal, ou o quanto o Poder Público deveria aplicar em Investimentos, como se estes não provocassem o aparecimento daquelas. Mas, nunca ouvi ou li qualquer coisa sobre o quanto gasta o Poder Público para gerar e manter benefícios em favor daqueles que continuam devendo à Fazenda Pública. O que quero afirmar é que o procedimento que se propõe muda o foco do controle para os devedores, fazendo com o que os créditos em cobrança sejam revelados no início e no fim do período, e pressione a administração para a sua efetiva cobrança.

Para que isto aconteça, entretanto, há a necessidade de uma mudança de cultura na nossa administração em todos os setores, inclusive nos procedimentos administrativos, os quais envolvem a organização administrativa e contábil, o que inclui a qualificação dos servidores (ver artigo de minha autoria Razões e Condições para adoção do Regime de Competência na Contabilidade Governamental).

Atualmente, a Contabilidade tem relações mais estreitas com a Tesouraria, em razão do regime de caixa, em que as receitas são reconhecidas. Com a adoção do regime de competência essa situação muda completamente, pois a Contabilidade conversará primeiro com o setor da receita para tomar conhecimento inicial dos devedores para, posteriormente, proceder aos registros das arrecadações, por isto as necessárias reformulações administrativas, o que não significa que se abandonará as informações da Tesouraria, as quais servirão de base para as avaliações dos saldos finais dos créditos a receber.

O senhor afirma que a adoção do chamado Regime Misto decorre de uma interpretação equivocada e isolada dos dispositivos que tratam das Normas Gerais de Direito Financeiro, em destaque a Lei Federal 4.320/64. Sendo o senhor professor de Ciências Contábeis, que tipo de cuidados devem ser observados por parte dos contadores, gestores e outras pessoas envolvidas no processo de tomada de decisão para que não interpretem a legislação dessa forma?

Penso que o primeiro passo é ler o conteúdo da Lei com cuidado, com atenção, identificar as ligações que os dispositivos têm entre si e com outras leis. A legislação na área governamental é complexa, a começar da própria Constituição da República, daí o necessário cuidado na leitura para evitar, ou, pelo menos, minimizar os equívocos.

Dentro da área pública é difícil observar preocupações com determinados aspectos muito comuns no mercado, como por exemplo, a depreciação e o controle dos custos das atividades realizadas. O senhor, através de artigos que escreveu, defende a apuração dos custos das atividades realizadas pela entidade pública assim como a depreciação a que estão sujeitos os bens públicos. Por quê?

São assuntos que estão emergindo agora com a adoção de novos procedimentos contábeis motivados pelas Normas Brasileiras de Contabilidade Aplicadas ao Setor Público, e que, entretanto, não são tão novos assim, como se vem propalando.
Há muito tempo, desde a primeira edição do meu livro Contabilidade Muncipal, teoria e prática (1973), venho falando sobre os mesmos. A própria Lei 4320, que já tem 47 (quarenta e sete) anos trata desses assuntos. Só que, como muitas outras regras, nunca foram postas em prática. Porque razão? Não sei.

No IBAM, o senhor trabalha com consultoria há muitos anos. O senhor poderia elencar algumas das dúvidas mais frequentes demandadas pelos Municípios. A questão da contabilização dos bens públicos de uso comum como ativos públicos, da qual o senhor discorda, é uma delas? O senhor poderia explicar melhor as razões de sua discordância?

Além das atividades de Professor e Coordenador dos Cursos nas áreas de Orçamento, Contabilidade e Finanças Governamentais, promovidos pela Escola Nacional de Serviços Urbanos do IBAM, todas as dúvidas específicas de caráter orçamentário, financeiro e patrimonial, apresentadas por escrito e por telefone pelas entidades municipais associadas ao Instituto, são atendidas por meio de pronunciamentos técnicos, de acordo com a natureza da consulta, pelo setor que está sob a minha responsabilidade denominado Centro de Estudos Interdisciplinares em Finanças Municipais – CEIF.

São dúvidas apresentadas pelos Poderes Executivo e Legislativo, que nos obrigam a estudos e pesquisas naqueles campos para a elaboração do respectivo pronunciamento. Abro um parênteses para informar que, às vezes, a título de cortesia, atendo também os mesmos problemas que me são apresentados por entidades governamentais que não estão associadas ao IBAM.

Além dos pronunciamentos técnicos, que às vezes são utilizados pela Justiça nos seus julgados, o CEIF realiza outros trabalhos de índole técnica sob a forma de projetos tais como análises de balanços, de orçamentos, da Lei de Diretrizes Orçamentárias, e do Plano Plurianual, bem como de Leis que criam os Fundos Especiais. Sobre cada tema, também é emitido um pronunciamento de natureza técnica, com recomendações para procedimentos de ajustes e correção.

Com referência aos bens de uso comum tais como ruas, praças, parques, jardins, avenidas, pontes, rodovias, pontilhões, túneis e outros do gênero, a minha opinião é de que as aplicações de recursos sejam contabilizadas na fase de construção para se apurar os respectivos custos. A ativação desses bens após a construção, no meu entendimento, é desnecessária por se tratar de benefícios gerados em favor da população.

É preciso que se entenda que esses benefícios às vezes são de natureza tangível ou intangível como, por exemplo, o aprendizado (na área da educação), a saúde, extinção de doenças e outros. As ruas, as praças, os jardins, as pontes, os túneis, as rodovias, os viadutos, os monumentos nas praças, são da população, que os utiliza para a sua satisfação. São, portanto, diferentes daqueles bens utilizados pela Administração para a concretização das finalidades da organização governamental, em que pese alguns poderem ser classificados como de uso comum.

O senhor acredita que o orçamento participativo é uma boa ação para democratizar o acesso da sociedade civil às decisões sobre como gastar o dinheiro público? De que forma esse processo ocorre nas experiências brasileiras?

Só acredito quando o cidadão se conscientizar de que, além dos direitos que reivindica, tem obrigações e deveres para cumprir. Portanto, o orçamento participativo deve ser um instrumento de mão dupla.

O senhor é um dos poucos profissionais da área pública que possui reconhecimento tanto dentro da academia quanto no mercado. De que maneira o senhor acredita que uma atividade pode auxiliar na boa execução da outra e vice-versa?

Se sou reconhecido, não sei, mas tenho me esforçado para dar a minha contribuição como cidadão e como profissional.

Penso que haver integração das atividades da organização, não importa se é meio ou fim, leva ao sucesso na concretização dos seus objetivos.

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